28.10.2015 – Pela oxigenação da gestão coletiva de direitos autorais: a lei 12.853/13 e os deveres de transparência, eficiência e modernização impostos às associações

A atual lei brasileira de direitos autorais – Lei 9.610/98 –, assim como a legislação anterior, previu a gestão coletiva como um dos meios de defesa desses direitos. Em seus arts. 97 e seguintes, o diploma regula a possibilidade de os titulares dos direitos se organizarem em associações para administrar as suas obras, delegando a um único ente, integrado por diversas associações, a competência para arrecadar e distribuir os valores atinentes aos direitos de execução pública de obras protegidas – o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD).

Mais do que conveniente, a gestão coletiva é mesmo indispensável para o efetivo exercício das prerrogativas legais, tendo em vista a impossibilidade fática de que cada titular de direitos, individualmente, autorize e fiscalize toda e qualquer utilização por terceiros das obras de que participem, notadamente em tempos de internet. Mas não é só isso: a concentração dessas tarefas em uma associação visa, também, possibilitar uma maior difusão lícita de conteúdos protegidos, uma vez que viabiliza a concessão de autorizações em larga escala.

Trata-se, portanto, de um desenho legislativo que a um só tempo atende a dois grupos de valores de estatura constitucional. Primeiro, ele promove a proteção dos interesses daqueles que são titulares de direitos autorais (art. 5º, XXVII, CRFB/88). Ao mesmo tempo, facilita a circulação lícita na sociedade de obras protegidas, o que é pressuposto para a realização dos direitos difusos à educação e ao entretenimento (art. 6º, CRFB/88), ao acesso à cultura (art. 215, CRFB/88) e à informação (art. 5º, XIV, CRFB/88).

Ou seja, essas associações tanto gerem os direitos fundamentais dos milhares de titulares de direitos autorais que, sozinhos, poderiam não ser devidamente remunerados por suas participações, como facilitam o direito à cultura, à educação, ao entretenimento e à informação dos milhões de usuários das obras. É inequívoco, então, o caráter de interesse público de que se revestem tais entidades.

Caráter esse que faz recair sobre essas associações uma especial exigência de que observem deveres de zelo e de transparência – especialmente no caso da gestão coletiva de direitos de execução pública, que é exercida pelo ECAD em regime de monopólio legal. Muito embora tais deveres já pudessem ser extraídos da sistemática vigente, sobretudo por força da indiscutível dimensão de interesse público inerente à gestão coletiva de direitos autorais, eles vieram a ser positivados com a edição da lei 12.853/13, que alterou a lei 9.610/98 e foi posteriormente regulamentada pelo decreto 8.469/15.

A modificação legislativa surgiu como uma resposta à reconhecida falta de transparência das associações responsáveis pela gestão coletiva de direitos autorais. É o que se extrai do Relatório Final de Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada para investigar “irregularidades praticadas pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD1. Além disso, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) proferiu decisão paradigmática em que condenou o ECAD por se valer do monopólio legal para abusar de sua posição dominante2. Tanto a CPI quanto o CADE apontaram, de maneira categórica, a existência de inúmeras irregularidades na gestão coletiva de direitos autorais, todas elas favorecidas, para não dizer provocadas, pelos critérios obscuros e pouca transparência praticados pelas respectivas associações.

O passo seguinte foi, então, a positivação expressa pela lei 12.853/13 dos deveres de transparência (arts. 98, §2º, e 98-B, VII, da lei 9.610/98), de eficiência (art. 98, §2º, e 98-B, VII, da lei 9.610/98) e de modernização (art. 98-B, V, da lei 9.610/98), que devem ser cumpridos pelas associações de gestão coletiva na cobrança e na distribuição dos valores devidos a título de direitos autorais, dado o interesse público (art. 97, §1º, da lei 9.610/98) subjacente a tais atividades.

Note-se que a iniciativa se insere em um marco mais amplo de transformações que têm redefinido a cada dia as fronteiras jurídicas entre o público e o privado. É que, embora as associações de gestão coletiva sejam pessoas jurídicas de direito privado que não integram a estrutura do Estado, elas desempenham funções voltadas a interesses coletivos. Para usar a linguagem do STF3, elas ocupam o chamado “espaço público não-estatal“, pelo caráter de inegável interesse público de suas atividades. Também por isso o legislador fez constar que a gestão coletiva deve atender à sua função social (art. 97, §1º, da lei 9.610/98), essencialmente vinculada à promoção do acesso à informação, à cultura, ao entretenimento e à educação.

Para além de contribuírem para a realização dos referidos direitos difusos, os deveres de transparência, eficiência e modernização servem à tutela dos próprios autores. Em especial, eles asseguram o direito à informação (art. 5º, XIV, CRFB) dos titulares de direitos autorais acerca do uso que é feito de suas obras e garantem aos usuários de obras protegidas informações sobre as utilizações realizadas, além de prever que as associações devem buscar eficiência na apuração de tais direitos. Trata-se de claro exemplo de incidência horizontal de direitos fundamentais que, no caso, mostra-se imprescindível para preservar o equilíbrio de forças na relação privada entre representante e representados. Sobretudo em um cenário marcado pelas inúmeras constatações e suspeitas de malfeitos na gestão coletiva de direitos autorais.

Em suma, vivencia-se, atualmente, um processo necessário de oxigenação do sistema de gestão coletiva com mandamentos de direito público, que é capaz de proporcionar uma situação em que todos ganham. Não apenas a sociedade em geral, mas os titulares dos direitos de autor e conexos, que têm todo o interesse em fiscalizar a atividade das entidades cuja atuação interferirá diretamente em sua esfera jurídica patrimonial e moral. Win-win, para usar a expressão dos economistas.

É preciso destacar, contudo, que muitos dos avanços trazidos pela lei 12.853/13 estão sendo questionados no bojo de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 5062 e 5065), pendentes de julgamento no STF. Em direção oposta à que se expôs acima, as requerentes das ADIs – que são associações de gestão coletiva de direitos autorais – sustentam que as medidas trazidas pela lei importariam em ingerência estatal indevida sobre o funcionamento das entidades, dado o seu caráter estritamente privado.

O ponto foi precisamente rebatido pelo Procurador-Geral da República, que, em parecer opinando pela improcedência das duas ações, enfatizou que: “o regime dessa gestão coletiva não é, em absoluto, puramente privado, e isso justifica certo grau de interferência do poder público“.

Enfim, as inovações trazidas pela lei 12.853/13 certamente não resolverão todos os problemas em torno da proteção de direitos autorais e da profícua difusão das obras na sociedade. Mas elas representam, sem dúvida, um passo importante no aperfeiçoamento regulatório do tema, promovendo em maior medida os direitos fundamentais dos autores e dos usuários de obras protegidas. Resta aguardar que o STF ratifique esses relevantes avanços.

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1 Em 2011, o Senado Federal instaurou CPI a fim de apurar possíveis desmandos por parte do ECAD na arrecadação e distribuição de valores atinentes a direitos autorais. O Relatório Final da CPI encontra-se disponível, na íntegra, em sítio eletrônico do Senado Federal(http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=106951).

2 No julgamento do Processo Administrativo 08012.003745/2010-83, o CADE concluiu que o ECAD valendo-se de seu monopólio legal, abusava de sua posição dominante para fixar, unilateralmente, condições contratuais arbitrárias e irrazoáveis em suas avenças. Apurou-se, ainda, a organização de cartel entre o ECAD e suas associadas, que fixavam preços abusivos pela execução pública das obras e criavam barreiras para a entrada de novas associações no mercado.

3 STF. RE 201819, Relatora Min. Ellen Gracie, Relator p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 11/10/05, DJ 27/10/06.

Fonte: Migalhas